quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

A VIDA É BELA, A MONTANHA É RUSSA, E VICE-VERSA

Por Julio Zamparetti

Depois da experiência traumática na Montanha-russa, há quatro anos, jurei que nunca mais iria embarcar num carrinho daqueles. Eu havia entrado em pânico, completei todo o percurso de olhos fechados, fiquei com hematomas nas canelas, consequência da busca inconsciente por um pedal de freio. Saí daquele brinquedo tremendo como vara verde, sem olhar pra trás, com a convicção de nunca mais voltar.

Quatro anos depois estava novamente numa fila para embarcar em outra Montanha-russa. Dessa vez uma bem maior. Mas eu precisava me superar, encará-la de olhos abertos e vencer o medo. É assim a vida, que para ser bela tem que ser vivida com olhos abertos, não sem medo, mas também não sendo dominado por ele. É preciso coragem para seguir adiante. E coragem não é ausência de medo, mas é a capacidade de seguir em meio aos temores.

Assegurei-me de que o equipamento era seguro, os trilhos reforçados, poltronas seguras, idoneidade e fama do parque (Beto Carrero World), tudo visivelmente muito mais reforçado que aquela de anos antes. Confiei e fui...

De olhos abertos, percebi que a pior sensação é a de impotência, não adianta querer parar, não dá para desistir, não há como frear, nem mesmo diminuir nas curvas. A única coisa que dá pra fazer é confiar que tudo está sob controle, que o equipamento foi devidamente projetado para aquelas curvas, quedas e loops em alta velocidade.

Foi então que me dei conta de que meu medo era o mesmo de anos atrás. O que havia de diferente era a confiança presente agora. Como na Montanha-russa, a vida também nos exige confiança em alguém, se fato desejamos viver. Aprendemos a lidar com nossos medos quando estamos certos de que estamos em mãos seguras. As vezes podemos nos enganar, mas não dá pra viver sem confiar. Cada um de nós é parte de uma imensa engrenagem em que muitos precisam de nossos talentos e nós das virtudes dos outros. Tudo precisa estar bem atado, ajustado, sincronizado, revisado, lubrificado para que a engrenagem não enferruje, não quebre, nem deixe de funcionar.

As engrenagens são compostas de peças de diferentes tamanhos, formas, desenhos, pesos e preços, mas nenhuma delas é menos importante. A vida é composta de pessoas diferentes, mas igualmente valiosas. O amor, o respeito, a compaixão e a confiança mútua ajustam nosso caminhar, renovam nossas energias e nos ajudam a superar nossos conflitos, medos e deficiências.

Fui ainda, naquele mesmo dia, outras duas vezes, sendo a última na Montanha nova, maior, com poltronas suspensas, muito mais veloz, com muito mais loops, pura adrenalina! Nessa, eu não entendia nada, não sabia se estava de cabeça pra baixo ou pra cima, hora via terra, hora via céu, hora via água. De modo ainda mais intenso tive que exercitar minha confiança e esperar que breve aquela loucura iria terminar. E quando acabou eu queria mais!

Assim também é a vida, às vezes russa, às vezes bela, mas sempre fascinante quando se sabe confiar na vida, em Deus, na amizade, no amor e em tudo que faz a vida valer a pena. Mesmo que nem sempre você entenda o que está acontecendo, não desista, pois as turbulências vão passar, e no final de tudo você vai ver que valeu a pena e que faria tudo de novo para saber o que, então, irá saber.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

SOBRE A DIVERSIDADE RELIGIOSA

 Por Julio Zamparetti

Quando vi um pequeno desenho em que cinco pessoas representando as cinco grandes religiões do mundo estavam de mãos dadas e sobre elas uma frase que dizia que “a missão das religiões deveria ser te unir ao divino e não te separar do teu irmão”, comecei a refletir sobre o que nos impede de sermos assim.

O problema não está, simplesmente, no fato de que a missão das religiões seja promover a união com o divino. Isso é o que todas propõem. O problema está justamente no fato de que as pessoas pensam que sua religiosidade faz isso e que só ela faz isso. Dessa forma, tem-se por certo de que a fidelidade a Deus constitui, necessariamente, uma inimizade com o mundo e os deste mundo, infiéis, ou fiéis de outra religião. Pensa-se que a amizade e tolerância com a religião alheia é um ato de infidelidade ao Deus verdadeiro, além de ser uma conivência à danação da alma daquele que pratica outra religiosidade. Portanto, para esse tipo de religioso, a intolerância religiosa não é apenas um ato de amor a Deus, mas também um ato de amor ao próximo, já que a conversão dele o salvará das chamas eternas do inferno. Ironicamente, o que se percebe disso é que nossa religiosidade promete um céu depois, mas em função disso cria um verdadeiro inferno agora; almeja paz no céu, fazendo guerra santa na terra; prega uma religação com deus a quem não vê, mas separa os irmãos aos quais vê. E eu me pergunto: que crédito eu posso dar a uma religião assim? Certamente há alguma coisa errada.

Essa concepção de exclusividade salvífica da religião foi o que a caracterizou até aqui e até aqui é o que lhe confere o atributo de confiabilidade. Santo Agostinho (400 a.D.) já dizia equivocadamente: “fora da Igreja Católica não há salvação”. E por mais que novas igrejas critiquem o santo e a igreja Católica, fazem o mesmo apropriando-se da verdade como se só seus olhos a pudessem enxergá-la. E para piorar, as pessoas em geral sempre dão mais credibilidade às igrejas que assim se portam, pois esperam, de sua liderança, a garantia de que vão morar no céu.

Então, se a apropriação daquilo que é chamado de “verdadeira revelação” é uma característica religiosa, proponho a desreligionização da religião. Pois não há saída. Depois de tantos séculos de acusações de uns sobre os outros, concluo que se todos estiverem certos, estarão todos errados; e se apenas um estiver certo, voltamos à estaca zero, de onde já vimos que está tudo errado.

É necessário, então, perdermos a maior característica da religiosidade e deixarmos de pensar que somos donos da verdade. Jesus denunciou os fariseus por se assentarem na cadeira de Moisés, não passarem pela porta e nem deixarem os outros entrarem. Hoje os Cristãos se sentam na cadeira de Jesus e fazem a mesma coisa que fizeram os judeus.

Ninguém é dono da verdade e nenhuma verdade é absoluta. É necessário respeitar a forma como o outro vê Deus. Só há um Deus, eu concordo. Mas as formas como esse único Deus se revela são inúmeras. Javé, Krishna, Jesus, Buda, Alá ou Oxalá, são apenas algumas das formas mais populares. Podemos acrescentar Iandejára e Ianderum, os deuses que os índios Tupis-Guaranis e Guaranis, respectivamente, já criam antes de qualquer catequização dos homens brancos.

Cada tribo ou povo disperso no tempo e no espaço teve sua forma de interpretar a revelação de Deus através da natureza, da consciência e da inspiração. Penso que nenhuma revelação é superior à outra, mas são todas complementares.  Todas as religiões são como garimpos cheios de cascalhos e pedras preciosas. O importante é que retenhamos delas o que é bom, e sejamos seres humanos melhores.


Isso salva o mundo.

domingo, 21 de dezembro de 2014

PRECISAMOS DE UM NATAL

Por Julio Zamparetti

Quando a Virgem Maria recebeu a notícia do anjo, de que seria mãe do Filho de Deus, logo se espantou e, intrigada, perguntou: como será isso se sou virgem? Ao que o anjo lhe respondeu: Descerá sobre ti o Espírito Santo e o poder do Altíssimo te envolverá.

Assim também, nós muitas vezes nos vimos diante de circunstâncias das quais nos perguntamos: como poderei vencer se não vejo possibilidades para isso? Como alcançar a meta se sou cheio de limitações? Acho que se prestarmos bem atenção seremos capazes de ouvir o mesmo anjo dizendo: A possibilidade de vencer reside no fato de que descerá sobre ti o Espírito Santo e o poder do Altíssimo te envolverá.

Mas afinal, o que significa isso? Que poder é esse? Quem é esse Espírito?

Estou convencido de que o poder que nos envolve é o mover do Espírito Santo, fonte de toda vida da terra. Ser envolvido por ele é receber toda força que emana da terra, dos céus, do amor, da vida e das pessoas de bem. É perceber que nunca estamos sós, que Ele está presente, que de alguma forma sempre está conosco.

Quando Cristo nasce, não nasce só uma cabeça, nasce um corpo. Ele é a cabeça, nós os membros de seu corpo, dizia o santo Apóstolo. Portanto, o Natal que precisamos é o Natal do nosso próprio nascimento como corpo de Cristo.

Ser corpo de Cristo nos impulsiona à superação dos próprios limites. No corpo a mão não se limita ao que é capaz de fazer, porque como corpo é beneficiada por tudo que também o pé é capaz. Da mesma forma pés e mãos são beneficiados por tudo que também pernas, braços, olhos e ouvidos fazem.

Maria não estava sozinha, todo um corpo conspirou a seu favor. O anjo estava com ela, o sonho de José, o anjo do sonho e depois o próprio José estavam do seu lado. João Batista integrou esse corpo quando saltitou no ventre de sua mãe, Isabel, que com seu marido, Zacarias, também estavam juntos à Maria. Os magos do oriente, os pastores do campo, as ovelhas e os bois, as estrelas no céu e os anjos celestes compuseram um corpo espiritual que envolveu Maria de forma poderosa.

O nascimento do Messias é o nascimento de todos nós como um só corpo em que seus membros se envolvem um com o outro e um ao outro, se complementam, se fortalecem, um supre as deficiências dos outros, se importam uns com os outros. Nele todos somos fortes porque somos um. Não importa que nome damos a esse Cristo (se Jesus, Buda, Oxalá, Moisés ou Maomé), importa que sejamos envolvidos por esse Espírito, porque é desse Natal que precisamos. Natal que nos faz ser um na beleza da diversidade. Natal que faz com que amar ao outro seja como amar a si mesmo.

Precisamos, urgentemente, de um Natal.

sábado, 20 de dezembro de 2014

EU E RUBEM ALVES

Por Julio Zamparetti

Eu não posso negar o quanto gosto de ler Rubem Alves. Acredito ter muita coisa em comum com ele, sobretudo a forma de encarar Deus. Embora eu não seja digno de comparar-me a tamanho gênio, o fato é que tivemos uma formação protestante, escrevemos alguns livros, como eu, ele era diabético, de maneira semelhante nos desiludimos com a religião, ele se tornou psicoterapeuta e eu um padre anglicano. Por mais estranho que possa parecer, considero possível que nossa maior semelhança esteja neste último quesito. Acontece que nossa desilusão com a religião nos levou a um caminho que acredito ser mais próximo de Deus, especificamente aquele Deus do qual a religião se desligou.

Quando o Santo Apóstolo Paulo anunciava um Deus desconhecido ao povo de Atenas, parecia fazer uma antítese da pregação da religião que o procedeu. Digo isso porque a religião sempre anuncia um deus totalmente conhecido, descrito e delineado. Os catecismos religiosos respondem a tudo, explicam Deus, revelam sua vontade, dizem quem vai pro céu, quem vai pro inferno, como se vestir, o que comer, quando não comer, o que não fazer, o que agrada a Deus e o que o desagrada. É bem verdade que nem o próprio Apóstolo Paulo resistiu à tentação de também dizer quem seria barrado na porta do céu. Mas tudo bem! Quem nunca caiu em tentação? Todavia eu insisto que certo estava Cristo quando disse que as prostitutas (de quem Paulo disse que não entrariam no Reino do Céu) precederiam, no céu, aos religiosos (de quem Paulo poupou em seu julgamento). Isso me leva a crer que ninguém sabe bulhufas alguma sobre quem são os condôminos celestes, se é que estes existem.

Por isso anuncio um Deus que desconheço. Assim, eu padre, me assemelho a Rubem psicoterapeuta. Psicoterapeutas não têm as respostas. Se as tiver, serão falsas. A função do psicoterapeuta é ajudar seu cliente a encontrar suas respostas dentro de si. Essas sim serão verdadeiras, ainda que contrárias ao que o próprio terapeuta esperava. Eu sei que padres são religiosos e que a religião, ao contrário da psicoterapia, tem respostas pra tudo. Mas acima de tudo, um padre tem um compromisso com Cristo, que, por sua vez, nunca dava as respostas. Ele usava e abusava do processo maiêutico, fazendo com que seus interlocutores acabassem por responder a própria pergunta. Não foram poucas as vezes em que Jesus respondeu uma pergunta com outra pergunta! Ao contrário da religião, Ele fazia as pessoas pensarem.

Comumente as pessoas vêm, a mim, contar seus problemas esperando que eu lhes diga o que fazer. Eu não tenho as respostas! Se as tiver, serão falsas. Minha tarefa como conselheiro espiritual é ajudar a pessoa a encontrar a paz e o equilíbrio para saber avaliar com clareza a situação e olharem para dentro de si a fim de que isso possa contribuir no processo da busca da sua própria resposta, pois esta seguramente será a resposta certa, ainda que contrarie a resposta que eu presumia.

Infelizmente nossa gente ainda prefere as respostas falsas. São mais fáceis, estão prontas, é só comprar, e estão em promoção. É a geração da terceirização terceirizando o pensamento. Bem sabem disso os vendilhões da fé que se aproveitam disso para lotar suas igrejas e engordar suas contas bancárias. Com uma resposta simples para todos os complexos problemas da vida, eles iludem as multidões dos que são incapazes de exercitar a faculdade, dada por Deus, do livre pensamento.

Voltando ao assunto da semelhança do pensamento que tenho sobre Deus com o pensamento de Rubem Alves, chama-me a atenção o fato de que só há pouco tempo conheci seus escritos, enquanto seus pensamentos já os conheço há muito tempo. Acho que pensamentos são energias que produzimos e (como no universo nada se perde, tudo se transforma) são capazes de integrar ambientes, modificar situações, e muitas vezes reverberar no espaço até encontrar um cabeção onde pousar. Por isso tenho uma leve desconfiança de que sintonizei a frequência dos pensamentos de Rubem Alves, fazendo com que os conhecesse antes mesmos de poder lê-los. Mas isso não acontece por acaso. O que acontece é que, enquanto na física os opostos se atraem, na metafísica os que se atraem são os semelhantes. Então, se você quer sintonizar coisas boas, comece pensando e praticando coisas boas... Viu? Já atraiu esse texto! Tomara que isso seja bom!

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

SOBRE A SALVAÇÃO CRISTÃ

Por Julio Zamparetti 

Sempre fui incomodado por essas fórmulas mágicas salvíficas: “pra ser salvo você tem que ser batizado”, “tem que dar o dízimo”, “tem que crer em Jesus”, “tem que confessar os pecados”, “tem que repetir uma oração recebendo Jesus”, “tem que fazer outra oração renegando o passado”, “não pode falar mal do pastor e deve lhe ser obediente em qualquer circunstância”. Então Jesus morreu pra me salvar, mas só me salva se eu me salvar, participando dos ritos e deveres mágicos que a igreja determina. Você não acha isso um tanto estranho? Eu acho estranhíssimo!

Quem quer entender a salvação, segundo a Bíblia, tem que entender o contexto histórico bíblico. Do contrário... bem... do contrário você terá essa bagunça que citei acima da qual eles insistem em chamar de teologia cristã.

O conceito de salvação dos templos bíblicos era de que “sem derramamento de sangue não havia remissão de pecados”. Este era um conceito muito antigo advindo das mais remotas civilizações, onde tudo era resolvido com rituais. Se a pesca ia mal, se a seca era longa, se a chuva era muito intensa, se a doença era implacável, se a colheita estava ameaçada, para cada mal havia um ritual apropriado que ia desde simples jejuns até orgias-rituais e sacrifícios de bebês. Quanto maior e melhor o sacrifício, maior a perspectiva de sucesso.

Então, buscava-se os animais mais gordos e sem defeito para os sacrifícios; os jovens mais formosos para os rituais da fertilidade; e os seres humanos mais puros, isto é bebês, para o maior dos sacrifícios. E para que este fosse bem aceito pelos deuses, ou mesmo pelo Deus de Israel, escolhia-se uma criança nascida da família mais honrada da cidade. Esse costume era normal entre os filisteus e foi seguido também pelos seus parentes próximos, os israelitas, até que Moisés regulamentou que fossem sacrificados apenas rolinhas, cordeiros, bodes e bois. No conceito teológico isso prefigurava o próprio filho de Deus que faria o sacrifício perfeito. Afinal, que família seria mais honrada que o próprio Deus? Que Filho seria mais puro que o próprio Filho de Deus? Assim o sacrifício do Filho de Deus seria o cumprimento da profecia de Daniel de que Ele faria cessar o sacrifício.

A Boa-Nova é, portanto, a mensagem de que Deus não quer sacrifícios, não quer rituais, Ele despreza as fórmulas mágicas, não se compromete com as invencionices eclesiais. A Boa-Nova é a mensagem de que somos livres, de que não há condenação alguma pesando sobre nós; na verdade, nunca houve. Mas porque nós nunca acreditamos que a salvação é de graça, Ele fez o sacrifício perfeito para que, crendo nele, nos libertássemos do ritualismo. Por isso tenho por certo de que o ritualismo sempre foi o pecado do qual Cristo veio nos salvar. Ironicamente, nossa religiosidade leva-nos a, em nome de Cristo, prendermo-nos justamente aos rituais, se não os mesmos, semelhantes aos que aquela religiosidade, deflagrada por Jesus, propunha.

Para contrapor esse ensaio, quero dizer que a religiosidade pode ser boa. Isso ocorre quando, e somente quando, ela é simbólica, iconográfica, pedagógica, quando o ritual leva o praticante à compreensão, interiorização e prática de uma verdade muito superior.

Em minha modesta opinião, acho que um dos maiores erros da igreja foi dar aos rituais o sentido objetivo, isto é, a concepção de pensamento como “foi batizado, está salvo”, “comungou, recebeu Jesus”. Ora, se na simples participação mecânica do sacramento o seu objetivo está concretizado, toda beleza poética e pedagógica do sacramento está aniquilada. O batizado está salvo sim, mas não por conta do ritual. Ele está salvo porque não pesa sobre ele condenação alguma e a pedagogia da água purificadora do batismo lhe traz, ou deveria trazer, essa compreensão. Da mesma forma, a Santa Comunhão não introjeta a pessoa de Cristo de forma objetiva, mas sim pedagógica, no comungante. Assim, o comungante aprende que como o trigo fará parte de seu corpo, o caráter de Cristo também tem que fazer parte de sua conduta diária. Quando não há essa perspectiva pedagógica todo sentido sacramental estará consumado no altar da igreja. Quando a perspectiva é pedagógica, sua consumação tende a se dar no altar da vida cotidiana, a lâmpada tende a ser tirada de debaixo da mesa e disposta de maneira que ilumine o mundo. Em outras palavras, a religiosidade simbólica é um meio de graça e espiritualidade tão dinâmica que é capaz de transformar o mundo. Doutra sorte, toda religiosidade será inútil.

Ressalto que a religiosidade objetiva é apenas uma forma vil de dominar o povo, tornar as pessoas dependentes do sacerdotismo, não liberta ninguém porque não é a verdade. A verdade liberta, a Boa-Nova liberta, o Filho liberta, sempre liberta... E esta é a Palavra da Salvação.

sábado, 6 de dezembro de 2014

EU NÃO CONHEÇO DEUS

Por Julio Zamparetti

Confesso: eu não conheço Deus! Também não conheço Curitiba, embora já tenha estado lá diversas vezes. Já estive algumas vezes na cidade de São Paulo, mas sem dúvida não a conheço mesmo! Seria insanidade afirmar conhece-la por ter andado pelo terminal Tietê ou ter corrido pelos portões de embarque do aeroporto de Congonhas. E o Rio de Janeiro... Ah o Rio! Conheço alguns quarteirões de Curicica, algumas ruas de Jacarepaguá, Duque de Caxias, baixada Fluminense, o Shopping da Barra, a praia de Ipanema e claro, o Maracanã. Mas tudo isso eu devo aos amigos anfitriões que gentilmente me conduziram pela Cidade Maravilhosa, pois eu, sozinho no Rio, faria coro à música de Renato Russo: “preciso me encontrar, mas não sei onde estou”. Isso, simplesmente porque não conheço o Rio de Janeiro, senão de por lá passar, assistir TV e ouvir falar.

Como, pois, eu poderia conhecer Deus? Nem minha pequena cidade, no interior catarinense, eu conheço todalmente! Deus seria ainda menor que ela para que eu o conhecesse?

Houve quem em sã consciência afirmou ter conhecido Deus de ouvir falar e depois de andar com Ele. Com base nisso há quem presuma conhecer Deus dessa mesma forma. Mas eu, na minha loucura, afirmo que estão todos enganados. Afinal, por onde tem andado essa gente a ponto de conhecê-lo? Teriam eles andado por outras galáxias? Teriam absorvido todas as culturas da terra? Teriam penetrado a mente de cada ser humano? A menos que você seja capaz de responder sim a todas essas prerrogativas, você não pode dizer que conhece aquele que se revelou de diferentes formas em cada ponto do universo e multiversos, em cada cultura da terra e em cada solitário e livre pensamento humano. A menos, é claro, que você tenha por Deus algo menor que isso, tão medíocre e pequeno a ponto de ser confinado ao seu planeta, à sua cultura, à sua religião e ao que você pensa.

O que conheço de Deus não é nada mais do que aquilo que leio, ouço, vejo, penso ou sinto. E tudo isso está subjugado à minha limitação cognitiva e a condição de onde estou e por onde ando. Há tantos outros caminhos que não são os meus, que não os sei e jamais trilharei, mas sei que Ele lá está também! E lá se revelará a outros que não sou eu, nem se parecem comigo, talvez nunca os conheça, nem os entenda. No entanto, eles entenderão de maneira tão diferente, um pouco do mesmo Deus do qual outro pouco eu entendo.

Conhecê-lo de andar com Ele não é nada, e ainda assim é o máximo que dEle podemos conhecer. A verdade é que Deus não é apenas o que se pode conhecer no caminho! Não seria Deus se não fosse bem maior que isso! Por isso não posso dizer que o conheço. Seria loucura dizer que conheço a Deus por ter andado com Ele por alguns lugares, durante alguns anos, pois o Deus que convictamente desconheço não se limita ao tempo e espaço, muito menos ao meu tempo e espaço.

Deus também se revela por onde os outros andam e de maneira que os outros entendam. É por isso que temos culturas tão distintas, mas que, igualmente, visam preservar a história de sua gente e a ordem na sociedade constituída; cristãos são diferentes de taoistas, budistas, umbandistas, e ainda assim procuram o bem comum! Porque nem o cristianismo, nem o taoísmo, nem qualquer outro ‘ismo’ ou cultura poderia comportar todo conhecimento de quem é Deus. Aliás, nem mesmo o universo inteiro poderia revelar a plenitude do Criador, pois, segundo o autor sagrado, os céus e a terra revelam apenas o que é possível dele ser conhecido. (vd.Rm.1,19)

Caso você pense diferente, não faça mal juízo de mim. É que talvez, por andarmos separados, tenhamos conhecido partes diferentes desse mesmo Deus.

Concluo dizendo que ninguém que realmente queira conhecer a Deus pode fechar-se em sua religião, cultura e filosofia. Para conhecermos, o quanto mais se pode conhecer desse Deus desconhecido e inconhecível, é necessário perder o medo do desconhecido, libertarmo-nos de nossos preconceitos, conhecer outros caminhos, religiões, culturas e filosofias, que não sejam as nossas, com a capacidade de respeitá-las, admirá-las, conviver e aprender com elas. Pois estou certo de que Deus revelou um pouquinho de si a cada pessoa, a fim de que conhecendo-nos e respeita-nos uns aos outros possamos juntos conhecer um pouco mais de Deus e a plena felicidade.


Sendo assim, a todos a paz de Cristo, Shalom, Namasté, Axé, Ahadith...

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

SOBRE HOMOSSEXUALIDADE

Por Julio Zamparetti

Se você descobrisse que seu filho é homossexual, amaria-o da mesma forma? Abençoaria a família que ele constituísse independentemente do modelo familiar? A despeito do que afirmam os fundamentalistas religiosos, acredito que Deus abençoa tal relacionamento. Afinal, uma coisa é o que a Bíblia diz, outra coisa é como a entendemos. É por isso que não temos pleno consenso em nossas interpretações. A única convicção teológica que tenho, hoje, é que o amor encobre multidão de erros, enquanto a falta dele aniquila qualquer chance de acerto. Assim não abro mão de amar indistintamente. Por isso amaria, aceitaria e abençoaria meu filho se fosse o caso, qual caso fosse.

Então o homossexualismo é abençoado por Deus? Duvido que Deus abençoe qualquer "ismo", seja ele qual for. Nem mesmo o cristianismo. Até porque nem Cristo é cristão. Os ‘ismos’ são doutrinas, conjuntos de ideias parciais organizadas para convencer alguém de uma “verdade” normalmente apresentada como absoluta. Destaco, portanto, que defendo o direito de pessoas viverem sua sexualidade seja homo ou hetero; mas de forma alguma defendo qualquer espécie de doutrinação, seja gaysista, machista, feminista, nazista, homofobista, evangelista, ou ceticista. Todas são formas de inculcar verdades particulares que tolhem o livre pensar alheio. E para não ser incoerente, não espero que Deus abençoe nem mesmo este meu antiismismo, pois uma antidoutrina não é mais que outra doutrina. Assim julgo ter apenas alguma chance de estar certo em alguma coisa, e se você quiser acreditar nisso, faça-o por sua conta e risco, se for livre para fazê-lo.

Mas por que o Apóstolo Paulo condenou os efeminados? Ora, se o texto estivesse realmente falando dos efeminados, no sentido da sexualidade, estaria isentando as lésbicas da mesma condenação. No entando, se o sentido real é o de ‘mole’ (tradução literal do grego ‘malakos’), pode estar se referindo a pessoas sem caráter, que se escondem atrás do fundamentalismo religioso e não têm firmeza para expressarem uma opinião livre e sincera, pessoas que não pensam por si, mas importam pensamentos de outros sem serem capazes de julgar qualquer “verdade” que lhes foi inculcada. Eu considero, e acredito que Deus também considere, que a falta de firmeza de caráter (malakos) é algo abominável e digno de condenação.

Lembre-se que amar é uma decisão, sexualidade não. Todas as teses que tentaram explicar a causa da homossexualidade foram derrubadas. Talvez isso tenha acontecido porque a homossexualidade não seja um mero efeito, mas simplesmente uma causa. Isso deveria ser especialmente entendido por quem acredita que não somos apenas corpo, mas corpo e espírito, pois se está comprovado que não há genes da homossexualidade, essa característica do ser deve estar no espírito, e não na carne. E sendo assim, eu até gostaria que a homossexualidade fosse apenas uma questão de influência demoníaca como creem alguns. Assim, “o problema” seria resolvido com um bom exorcismo ou banho de descarrego (rs). Mas ciente de que o não é esse o caso, fico com uma solução mais confiável, embora muito mais difícil: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei".

Então a homossexualidade vem de Deus? Eu não sei de onde mais poderia vir. É a própria Escritura quem diz que a carne vem do pó, que o espírito vem de Deus.

E quanto ao crescei e multiplicai, tantas vezes usado como argumento contra os relacionamentos homoafetivos, por conta da irreprodutibilidade, também deveria ser considerado em relação ao uso de anticoncepcionais. Ou será que seremos bíblicos apenas no que nos convém? Nesse aspecto acho biblicamente coerente o catecismo católico romano, que condena a prática homossexual e também a pílula e a camisinha. Coerente, mas impraticável, sejamos honestos. A prova dessa impraticabilidade é a concessão feita pelo próprio catecismo em relação aos métodos contraceptivos chamados de naturais. Mas estes não ferem também o mandamento que ordena a multiplicação? Mas se Deus desejar a concepção, a tabelinha não impedirá o desejo de Deus, dizem eles. Mas eu pergunto: que Deus é esse que depende da irregularidade de um método para realizar sua vontade? Por que o Deus que faz a virgem conceber não poderia realizar sua vontade a despeito de qualquer impedimento à concepção?


Engraçado é que qualquer ferramenta hermenêutica que você utilizar para justificar o uso de qualquer método contraceptivo, fortalecerá os argumentos que justificam a homoafetividade! Bem por isso, não me oponho nem a um, nem a outro. Acredito que sexo também foi feito para fazer-nos felizes. E se isso fere o fundamentalismo não estou preocupado. Sinto-me seguro na misericórdia de Deus, e disso não me faltam fundamentos. E se Deus é misericordioso, quem sou eu para contestar?

sábado, 5 de abril de 2014

A BÍBLIA É A PALAVRA DE DEUS?

Por Julio Zamparetti

Cumpre-me, inicialmente, dizer que a pergunta correta a respeito da Bíblia não é se ela é A PALAVRA DE DEUS. Enfatizo aqui o uso do artigo definido (A) que precede o termo Palavra de Deus, porque este dá à expressão uma definição objetiva, encerrando na Bíblia tudo o que Deus possa ter dito. Quanto a isso a própria Bíblia alega não encerrar em si o oráculo divino. O apóstolo João afirma que há tantas outras coisas que Cristo fez, que não haveria no mundo lugar para guardar os livros, caso tudo fosse escrito. Essa hipérbole denota o quão pouco da revelação de Deus está contida nas Escrituras, diante de todos os mistérios revelados, ou a serem revelados no mundo e por meio do mundo. O apóstolo São Paulo afirma que tudo o que se pode conhecer de Deus está revelado na criação. Essas revelações estão perfeitamente disponíveis na natureza, nas culturas, na ciência, na consciência, e no espírito (referindo-me às intuições, sonhos e percepções).

De fato, a Bíblia relata diversas formas para a manifestação do falar de Deus. Hora Deus fala por uma mula, outra hora por Balaão, um profeta pagão que profetizou a estrela que indicaria o nascimento de Jesus; fala aos magos (astrólogos) do oriente por meio dos astros, e ainda, na natureza, traz a revelação completa e direta de si mesmo, completamente isenta de erros de tradução. Então, dizer que a Bíblia e A Palavra de Deus, ou que somente a Bíblia é Palavra de Deus é, por si só, descrer da própria Bíblia.

Mas se este é um conceito tão antagônico em si, como pode ser tão defendido? Simples! Esse é nada menos que o principal artifício de dominação e manipulação popular de que a religião dispõe. Pois uma vez que o povo tenha aceitado a Bíblia como A PALAVRA DE DEUS, seu temor intrínseco não lhe permitirá contrariar o que nela está escrito, sob pena de se estar contrariando ao próprio Deus. Essa, portanto, é a deixa que a religião, no seu corpo institucional, precisa para que possa, com suas regras exegéticas, dar à Bíblia a interpretação que mais lhe convir, no intuito de que seus interesses particulares sejam recebidos e aceitos pelo povo como sendo a vontade inquestionável de Deus.

O medo de Deus torna esse conceito mais forte, que, por sua vez, torna o medo de Deus mais forte ainda. Enquanto essa roda gira, poucos têm coragem de descer e observá-la de fora. Os que fazem isso são logo excluídos da irmandade, porque esse círculo não suporta quem pense diferente. Na verdade, pouco suporta quem pense. Uma vez excluídos e logo taxados de hereges e desertores, os pensadores são postos em descrédito pelos demais que se firmam ainda mais no que pensam ser a verdade.

O circulo se fortalece porque o poder de massa é sempre muito forte. Cada um pensa: “se ele está certo, por que está sozinho? Será que só ele está certo e todos estão errados?”. O fato de ser minoria, já é um peso para quem se dispõe a questionar, e uma bengala para quem já não queria pensar. No caso, a maioria.

Como vimos, a Bíblia não reclama para si a autoridade de ser A PALAVRA DE DEUS. Além disso, ela não deixa esse espaço vazio, pois relata claramente a existência de A Palavra de Deus logo no início do Evangelho de São João: “No início era o Verbo, e o Verbo era Deus, e o Verbo estava com Deus”. Portanto, a Bíblia diz que JESUS, e não a Bíblia, é A PALAVRA DE DEUS. A Bíblia não existia no início, nem estava com Deus, nem era Deus.  Mas, de acordo com o conceito bíblico, Jesus sim.  Portanto, a pergunta correta com respeito à Bíblia é: a Bíblia é PALAVRA DE DEUS? (Agora omitindo o artigo definido “A”.)

Para responder essa pergunta, me reportarei ao conceito eucarístico, pouco conhecido nas igrejas do ocidente, chamado de Metabolo. Segundo este ensinamento, o pão consagrado  contém a presença de Cristo e se transforma espiritualmente no corpo de Cristo após ser ingerido pelo comungante, num processo de metabolismo espiritual. Não estou aqui defendendo este conceito em detrimento dos outros. Como padre anglicano, continuo mantendo a Eucaristia no conceito litúrgico de “mistério da fé”, portanto, sem explicação. Entretanto, gosto do conceito de metabolo para a reflexão a respeito de questões práticas da fé. Certo ou não, o conceito de metabolo me ensina uma verdade da qual não abro mão: participar do Corpo de Cristo não é um ato consumado na Celebração Eucarística. A comunhão apenas inicia o processo, chamando-nos a sujeitarmos nossa vida ao metabolismo espiritual, a ponto de que nossas atitudes mentais e físicas sejam uma clara manifestação da pessoa de Cristo. O resultado dessa metabolização é que sejamos transformados segundo a imagem de Jesus Cristo. No conceito de metabolo o pão só é corpo de Cristo se é ingerido com fé e disposição para viver o que propõe a mensagem da vida e morte de Cristo.

Fazendo um paralelo da Bíblia com o conceito do metabolo, a Bíblia se transforma em PALAVRA DE DEUS, quando, na semelhança do pão sagrado, é ingerida com fé e disposição para se viver o que propõe a mensagem da vida e morte de Jesus Cristo. Sem a fé e a disposição em viver Cristo, sem ter o amor como coluna vertebral de toda interpretação bíblica, sem a metabolização espiritual, a Bíblia continua sendo apenas uma coleção de livros, letra mortificante que, como podemos ver através das lentes da história da humanidade, provoca divisões, guerras, massacres e barbáries, serve de ferramenta para os vendilhões da fé, de fundamento para segregacionistas, racistas, machistas e homofóbicos, que vêem as pessoas como Cristo jamais as veria, e de Bíblia em punho as condenam como Cristo jamais as condenaria.

Tome muito cuidado, caro leitor, com aqueles que tentam te arrastar, mostrando-se irredutíveis em suas “verdades”, querendo te provar pela “Palavra” que você está errado e que, portanto, deve mudar para a igreja deles. Se as palavras proferidas por esses pregadores não manifestam o caráter de Cristo, se as interpretações não são motivadas por amor, nem geram compaixão pelos que sofrem, ao contrário, disseminam preconceito, discriminação e exclusão, esses tais podem até falar de Jesus, podem citar a Bíblia, mas o que expressam não é Jesus, não é Palavra de Deus.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

A QUEM PERDOARDES...

Por Julio Zamparetti

Aos discípulos disse o Mestre: “a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-á perdoado. A quem retiverdes, ser-lhes-á retido”. Com isso diz a Igreja Católica que os padres têm o poder de conceder a absolvição ou deixar à condenação o pobre pecador. De carona, outras igrejas, mesmo sem crer no sacramento da absolvição, se aproveitam da ideologia para autenticar a autoridade de sua inquestionável liderança. Entretanto, é difícil, para qualquer ser pensante, crer que o Pai deixará a tarefa de absolver ou condenar pessoas nas mãos de uma casta de pessoas igualmente falhas, tão somente por conta de sua patente religiosa.

Se aos discípulos foi-lhes dado o poder de perdoar, isso não se deu pelo fato de portarem uma patente religiosa, nem porque Deus confiava neles para esse fim, mas porque as pessoas confiariam no que eles haveriam de falar a elas. Pois o verdadeiro poder das palavras não está nos lábios de quem as diz, mas no coração de quem, tendo escutado, acredita.

Se é verdade que Cristo disse que seus discípulos teriam o poder de perdoar ou reter pecados, também é bem verdade que ele mesmo ensinou a perdoar sempre. Portanto, o que cabe ao clero não é se colocar na porta de entrada do céu conferindo o alvará de entrada no reino eterno, mas sim proclamar aos quatro ventos que não há mais condenação alguma, e por isso não há mais sacrifício algum a se fazer para se alcançar a misericórdia divina; nem ofertas, nem dízimos, nem vales, nem velas, nem carmas, nem darmas. Tudo está consumado e todos são livres se assim crerem.

Mas de fato pecados são retidos. Não porque há alguém que tenha o poder mágico de retê-los, mas porque há pecadores que creem que esse alguém tem tal poder. E esse mesmo alguém sabendo da farsa, se cala, a fim de exercer o poder dominador sobre os indoutos de boa fé.

Exercer o poder de perdoar pecados é, tão somente, ter influência suficiente sobre alguém, a fim de que este alguém compreenda que o perdão já foi concedido a quem, simplesmente, entende que não existe mais qualquer maldição ou condenação, senão aquela da qual já fomos todos sentenciados, a saber, somos presos ao que cremos.

Portanto, a quem crê, resta-lhe a certeza que o caminho expurga todo mal. É caminhando, errando e acertando, caindo e levantando, que vivemos um purgatório constante onde o aprendizado da vida nos resgata da escuridão e nos faz ser melhores a cada dia. Isso não tem nada a ver com dogmas, rituais ou sacrifícios. Tem a ver com consciência, verdade e liberdade. Porque a verdadeira religião nos salva do religionismo, nos religa ao universo e nos faz livres.

O versículo referido no início deste ensaio não deve, nem pode ser interpretado como uma outorga que Cristo dá aos seus discípulos para que determinem quem recebe ou não o perdão de Deus, quem entra ou fica de fora do céu. Jesus não incumbiria seus discípulo de prestarem o desserviço que já era prestado pelos fariseus e pelo qual Jesus os repreendia, denunciando-os  por sentarem-se na cadeira de Moisés, não entrarem pela porta nem deixarem que outros entrassem. O versículo deve, sim, ser entendido como uma exortação de Cristo sobre a responsabilidade daqueles que se evidenciam no ministério eclesiástico, quanto aos reflexos gerados por seus ensinamentos. Porque o bom ensinamento sempre liberta. “Vós já estais livres, pela palavra que vos tenho ensinado”, disse o Verbo de Deus.

Entendo que essa seja a única forma de sermos livres, para livre amarmos, servirmos e contemplarmos a vida numa relação de adoração sincera ao criador. Doutro modo estaremos apenas trocando amarras por amarras, laços por laços, desprendendo-nos daqui para aprisionarmo-nos ali, enganando-nos numa pseudo-conversão  onde tudo que se faz é, na melhor das hipóteses, barganha, barganha e barganha infernal. Nesse negócio não há mudança de vida, porque a verdadeira mudança de vida só se dá pelo amor, no amor e para o amor. Jamais o medo do castigo mudou alguém. No máximo moldou, limitou, aprisionou, condicionou o estereotipo sem qualquer conversão do interiotipo.

Eu não sei se a religião, como a temos hoje, suportaria uma fé assim. Mas sei que a subsistência de uma fé superficial estereotipada não é benéfica. Jamais foi. A verdade é que ela, assim como a vemos vivida hoje e estampada ao longo da história, precisa, para sua subsistência, mais do inferno do que do céu, mais do diabo do que de Deus, mais do medo do que do amor, mais da delimitação do que da liberdade, e o pior de tudo, mais da mentira do que da verdade. Essa realidade nos faz pensar no que, de fato, essa religião está nos religando. Porque foi em nome dessa fé que velhas benzedeiras que só faziam o bem foram bruxificadas e caçadas até a morte; dádivas preciosas como a música e a dança foram demonizadas; riquezas culturais foras diabolizadas; pessoas boas foram marginalizadas por conta de sua orientação sexual; gente linda foi segregada e escravizada por causa da cor de sua pele e mulheres foram discriminadas pela culpa de terem nascido mulheres. Então me pergunto: Quem precisa perdoar a quem?

Por fim, a verdadeira função sacerdotal cristã não é reter nem deter qualquer poder, mas sim guardar a fé que é vivida no amor, zelar pela consciência da liberdade que Cristo dá a toda criatura, lutar por justiça e paz na terra e não deixar que as coisas sagradas desta vida se corrompam pelo dogmatismo religioso que afasta o ser humano da simplicidade do Evangelho e da liberdade que há em seu Espírito.

Essa é a fé que me faz livre, como livre é o Espírito que a proclama.

quinta-feira, 20 de março de 2014

SISTEMA OU LIBERDADE

Por Julio Zamparetti
Ontem a liturgia lembrou São José, que acolheu Maria e cumpriu o propósito de Deus por conta de um sonho. Poderia ter sido um texto da Torá ou do Talmud, a palavra de um profeta, o conselho de um sacerdote, mas não; ele deu ouvidos ao seu sonho e nesse sonho ouviu a voz do Anjo de Deus.
Você ouviu algum líder religioso falar isso? Posso apostar que não. Afinal, aos líderes religiosos interessa que ninguém encontre a voz de Deus em seus sonhos, no coração, no interior. A eles interessa que você compre seu sistema teológico onde todos os conceitos sobre o que crer, fazer e pensar estão sistematicamente prontos. Se é verdade que onde há o Espírito de Deus, aí há liberdade, o fato é que onde há sistematizações a realidade é bem diferente.
O pior de tudo isso é ver que nós mesmos nos acostumamos a buscar as respostas em terceirizações, e então esperamos que um pastor, padre, guru, pai de santo, necromante ou cartomante nos diga o que fazer. Isso porque é muito trabalhoso buscar as resposta dentro de nós mesmos, nossa insensibilidade não nos permite consultar o sopro do Espírito que nos deu a vida. É como se pensar doesse, então nos parece conveniente que outros pensem pela gente. Ademais, nos disseram que pensar diferente é heresia e quem assim o faz vai para o inferno. E agora, José? Sistema ou liberdade? Eis a questão.
Ora, o Senhor é Espírito, e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade. (II Coríntios 3, 17)