Por Julio Zamparetti
Cumpre-me, inicialmente, dizer que a pergunta correta a respeito da
Bíblia não é se ela é A PALAVRA DE DEUS. Enfatizo aqui o uso do artigo definido
(A) que precede o termo Palavra de Deus, porque este dá à expressão uma definição
objetiva, encerrando na Bíblia tudo o que Deus possa ter dito. Quanto a isso a
própria Bíblia alega não encerrar em si o oráculo divino. O apóstolo João
afirma que há tantas outras coisas que Cristo fez, que não haveria no mundo
lugar para guardar os livros, caso tudo fosse escrito. Essa hipérbole denota o
quão pouco da revelação de Deus está contida nas Escrituras, diante de todos os
mistérios revelados, ou a serem revelados no mundo e por meio do mundo. O
apóstolo São Paulo afirma que tudo o que se pode conhecer de Deus está revelado
na criação. Essas revelações estão perfeitamente disponíveis na natureza, nas
culturas, na ciência, na consciência, e no espírito (referindo-me às intuições,
sonhos e percepções).
De fato, a Bíblia relata diversas formas para a manifestação do falar
de Deus. Hora Deus fala por uma mula, outra hora por Balaão, um profeta pagão
que profetizou a estrela que indicaria o nascimento de Jesus; fala aos magos
(astrólogos) do oriente por meio dos astros, e ainda, na natureza, traz a
revelação completa e direta de si mesmo, completamente isenta de erros de
tradução. Então, dizer que a Bíblia e A Palavra de Deus, ou que somente a
Bíblia é Palavra de Deus é, por si só, descrer da própria Bíblia.
Mas se este é um conceito tão antagônico em si, como pode ser tão
defendido? Simples! Esse é nada menos que o principal artifício de dominação e
manipulação popular de que a religião dispõe. Pois uma vez que o povo tenha aceitado a Bíblia como A
PALAVRA DE DEUS, seu temor intrínseco não lhe permitirá contrariar o que nela
está escrito, sob pena de se estar contrariando ao próprio Deus. Essa,
portanto, é a deixa que a religião, no seu corpo institucional, precisa para
que possa, com suas regras exegéticas, dar à Bíblia a interpretação que mais
lhe convir, no intuito de que seus interesses particulares sejam recebidos e
aceitos pelo povo como sendo a vontade inquestionável de Deus.
O medo de Deus
torna esse conceito mais forte, que, por sua vez, torna o medo de Deus mais
forte ainda. Enquanto essa roda gira, poucos têm coragem de descer e observá-la
de fora. Os que fazem isso são logo excluídos da irmandade, porque esse círculo
não suporta quem pense diferente. Na verdade, pouco suporta quem pense. Uma vez
excluídos e logo taxados de hereges e desertores, os pensadores são postos em
descrédito pelos demais que se firmam ainda mais no que pensam ser a verdade.
O
circulo se fortalece porque o poder de massa é sempre muito forte. Cada um
pensa: “se ele está certo, por que está sozinho? Será que só ele está certo e
todos estão errados?”. O fato de ser minoria, já é um peso para quem se dispõe
a questionar, e uma bengala para quem já não queria pensar. No caso, a maioria.
Como vimos, a Bíblia não reclama para si a autoridade de ser A PALAVRA
DE DEUS. Além disso, ela não deixa esse espaço vazio, pois relata claramente a
existência de A Palavra de Deus logo no início do Evangelho de São João: “No
início era o Verbo, e o Verbo era Deus, e o Verbo estava com Deus”. Portanto, a
Bíblia diz que JESUS, e não a Bíblia, é A PALAVRA DE DEUS. A Bíblia não existia
no início, nem estava com Deus, nem era Deus.
Mas, de acordo com o conceito bíblico, Jesus sim. Portanto, a pergunta correta com respeito à
Bíblia é: a Bíblia é PALAVRA DE DEUS? (Agora omitindo o artigo definido “A”.)
Para responder essa pergunta, me reportarei ao conceito eucarístico, pouco conhecido nas igrejas do ocidente, chamado de Metabolo. Segundo este
ensinamento, o pão consagrado contém a
presença de Cristo e se transforma espiritualmente no corpo de Cristo após ser
ingerido pelo comungante, num processo de metabolismo espiritual. Não estou
aqui defendendo este conceito em detrimento dos outros. Como padre anglicano,
continuo mantendo a Eucaristia no conceito litúrgico de “mistério da fé”,
portanto, sem explicação. Entretanto, gosto do conceito de metabolo para a reflexão
a respeito de questões práticas da fé. Certo ou não, o conceito de metabolo me
ensina uma verdade da qual não abro mão: participar do Corpo de Cristo não é um
ato consumado na Celebração Eucarística. A comunhão apenas inicia o processo,
chamando-nos a sujeitarmos nossa vida ao metabolismo espiritual, a ponto de que
nossas atitudes mentais e físicas sejam uma clara manifestação da pessoa de
Cristo. O resultado dessa metabolização é que sejamos transformados segundo a
imagem de Jesus Cristo. No conceito de metabolo o pão só é corpo de Cristo se é
ingerido com fé e disposição para viver o que propõe a mensagem da vida e morte
de Cristo.
Fazendo um paralelo da Bíblia com o conceito do metabolo, a Bíblia se
transforma em PALAVRA DE DEUS, quando, na semelhança do pão sagrado, é ingerida
com fé e disposição para se viver o que propõe a mensagem da vida e morte de
Jesus Cristo. Sem a fé e a disposição em viver Cristo, sem ter o amor como
coluna vertebral de toda interpretação bíblica, sem a metabolização espiritual,
a Bíblia continua sendo apenas uma coleção de livros, letra mortificante que,
como podemos ver através das lentes da história da humanidade, provoca
divisões, guerras, massacres e barbáries, serve de ferramenta para os
vendilhões da fé, de fundamento para segregacionistas, racistas, machistas e
homofóbicos, que vêem as pessoas como Cristo jamais as veria, e de Bíblia em punho
as condenam como Cristo jamais as condenaria.
Tome muito cuidado, caro leitor, com aqueles que tentam te arrastar, mostrando-se
irredutíveis em suas “verdades”, querendo te provar pela “Palavra” que você
está errado e que, portanto, deve mudar para a igreja deles. Se as palavras
proferidas por esses pregadores não manifestam o caráter de Cristo, se as
interpretações não são motivadas por amor, nem geram compaixão pelos que sofrem,
ao contrário, disseminam preconceito, discriminação e exclusão, esses tais podem
até falar de Jesus, podem citar a Bíblia, mas o que expressam não é Jesus, não
é Palavra de Deus.
Seu blog é encantador, estive a ver e ler algumas coisas, não li muito, porque espero voltar mais algumas vezes,mas deu para ver a sua dedicação e sempre a prendemos ao ler blogs como o seu. Se me der a honra de visitar e ler algumas coisas no Peregrino e servo ficarei radiante, e se desejar deixe um comentário. Abraço fraterno.António.
ResponderExcluirAntónio.