sábado, 5 de abril de 2014

A BÍBLIA É A PALAVRA DE DEUS?

Por Julio Zamparetti

Cumpre-me, inicialmente, dizer que a pergunta correta a respeito da Bíblia não é se ela é A PALAVRA DE DEUS. Enfatizo aqui o uso do artigo definido (A) que precede o termo Palavra de Deus, porque este dá à expressão uma definição objetiva, encerrando na Bíblia tudo o que Deus possa ter dito. Quanto a isso a própria Bíblia alega não encerrar em si o oráculo divino. O apóstolo João afirma que há tantas outras coisas que Cristo fez, que não haveria no mundo lugar para guardar os livros, caso tudo fosse escrito. Essa hipérbole denota o quão pouco da revelação de Deus está contida nas Escrituras, diante de todos os mistérios revelados, ou a serem revelados no mundo e por meio do mundo. O apóstolo São Paulo afirma que tudo o que se pode conhecer de Deus está revelado na criação. Essas revelações estão perfeitamente disponíveis na natureza, nas culturas, na ciência, na consciência, e no espírito (referindo-me às intuições, sonhos e percepções).

De fato, a Bíblia relata diversas formas para a manifestação do falar de Deus. Hora Deus fala por uma mula, outra hora por Balaão, um profeta pagão que profetizou a estrela que indicaria o nascimento de Jesus; fala aos magos (astrólogos) do oriente por meio dos astros, e ainda, na natureza, traz a revelação completa e direta de si mesmo, completamente isenta de erros de tradução. Então, dizer que a Bíblia e A Palavra de Deus, ou que somente a Bíblia é Palavra de Deus é, por si só, descrer da própria Bíblia.

Mas se este é um conceito tão antagônico em si, como pode ser tão defendido? Simples! Esse é nada menos que o principal artifício de dominação e manipulação popular de que a religião dispõe. Pois uma vez que o povo tenha aceitado a Bíblia como A PALAVRA DE DEUS, seu temor intrínseco não lhe permitirá contrariar o que nela está escrito, sob pena de se estar contrariando ao próprio Deus. Essa, portanto, é a deixa que a religião, no seu corpo institucional, precisa para que possa, com suas regras exegéticas, dar à Bíblia a interpretação que mais lhe convir, no intuito de que seus interesses particulares sejam recebidos e aceitos pelo povo como sendo a vontade inquestionável de Deus.

O medo de Deus torna esse conceito mais forte, que, por sua vez, torna o medo de Deus mais forte ainda. Enquanto essa roda gira, poucos têm coragem de descer e observá-la de fora. Os que fazem isso são logo excluídos da irmandade, porque esse círculo não suporta quem pense diferente. Na verdade, pouco suporta quem pense. Uma vez excluídos e logo taxados de hereges e desertores, os pensadores são postos em descrédito pelos demais que se firmam ainda mais no que pensam ser a verdade.

O circulo se fortalece porque o poder de massa é sempre muito forte. Cada um pensa: “se ele está certo, por que está sozinho? Será que só ele está certo e todos estão errados?”. O fato de ser minoria, já é um peso para quem se dispõe a questionar, e uma bengala para quem já não queria pensar. No caso, a maioria.

Como vimos, a Bíblia não reclama para si a autoridade de ser A PALAVRA DE DEUS. Além disso, ela não deixa esse espaço vazio, pois relata claramente a existência de A Palavra de Deus logo no início do Evangelho de São João: “No início era o Verbo, e o Verbo era Deus, e o Verbo estava com Deus”. Portanto, a Bíblia diz que JESUS, e não a Bíblia, é A PALAVRA DE DEUS. A Bíblia não existia no início, nem estava com Deus, nem era Deus.  Mas, de acordo com o conceito bíblico, Jesus sim.  Portanto, a pergunta correta com respeito à Bíblia é: a Bíblia é PALAVRA DE DEUS? (Agora omitindo o artigo definido “A”.)

Para responder essa pergunta, me reportarei ao conceito eucarístico, pouco conhecido nas igrejas do ocidente, chamado de Metabolo. Segundo este ensinamento, o pão consagrado  contém a presença de Cristo e se transforma espiritualmente no corpo de Cristo após ser ingerido pelo comungante, num processo de metabolismo espiritual. Não estou aqui defendendo este conceito em detrimento dos outros. Como padre anglicano, continuo mantendo a Eucaristia no conceito litúrgico de “mistério da fé”, portanto, sem explicação. Entretanto, gosto do conceito de metabolo para a reflexão a respeito de questões práticas da fé. Certo ou não, o conceito de metabolo me ensina uma verdade da qual não abro mão: participar do Corpo de Cristo não é um ato consumado na Celebração Eucarística. A comunhão apenas inicia o processo, chamando-nos a sujeitarmos nossa vida ao metabolismo espiritual, a ponto de que nossas atitudes mentais e físicas sejam uma clara manifestação da pessoa de Cristo. O resultado dessa metabolização é que sejamos transformados segundo a imagem de Jesus Cristo. No conceito de metabolo o pão só é corpo de Cristo se é ingerido com fé e disposição para viver o que propõe a mensagem da vida e morte de Cristo.

Fazendo um paralelo da Bíblia com o conceito do metabolo, a Bíblia se transforma em PALAVRA DE DEUS, quando, na semelhança do pão sagrado, é ingerida com fé e disposição para se viver o que propõe a mensagem da vida e morte de Jesus Cristo. Sem a fé e a disposição em viver Cristo, sem ter o amor como coluna vertebral de toda interpretação bíblica, sem a metabolização espiritual, a Bíblia continua sendo apenas uma coleção de livros, letra mortificante que, como podemos ver através das lentes da história da humanidade, provoca divisões, guerras, massacres e barbáries, serve de ferramenta para os vendilhões da fé, de fundamento para segregacionistas, racistas, machistas e homofóbicos, que vêem as pessoas como Cristo jamais as veria, e de Bíblia em punho as condenam como Cristo jamais as condenaria.

Tome muito cuidado, caro leitor, com aqueles que tentam te arrastar, mostrando-se irredutíveis em suas “verdades”, querendo te provar pela “Palavra” que você está errado e que, portanto, deve mudar para a igreja deles. Se as palavras proferidas por esses pregadores não manifestam o caráter de Cristo, se as interpretações não são motivadas por amor, nem geram compaixão pelos que sofrem, ao contrário, disseminam preconceito, discriminação e exclusão, esses tais podem até falar de Jesus, podem citar a Bíblia, mas o que expressam não é Jesus, não é Palavra de Deus.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

A QUEM PERDOARDES...

Por Julio Zamparetti

Aos discípulos disse o Mestre: “a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-á perdoado. A quem retiverdes, ser-lhes-á retido”. Com isso diz a Igreja Católica que os padres têm o poder de conceder a absolvição ou deixar à condenação o pobre pecador. De carona, outras igrejas, mesmo sem crer no sacramento da absolvição, se aproveitam da ideologia para autenticar a autoridade de sua inquestionável liderança. Entretanto, é difícil, para qualquer ser pensante, crer que o Pai deixará a tarefa de absolver ou condenar pessoas nas mãos de uma casta de pessoas igualmente falhas, tão somente por conta de sua patente religiosa.

Se aos discípulos foi-lhes dado o poder de perdoar, isso não se deu pelo fato de portarem uma patente religiosa, nem porque Deus confiava neles para esse fim, mas porque as pessoas confiariam no que eles haveriam de falar a elas. Pois o verdadeiro poder das palavras não está nos lábios de quem as diz, mas no coração de quem, tendo escutado, acredita.

Se é verdade que Cristo disse que seus discípulos teriam o poder de perdoar ou reter pecados, também é bem verdade que ele mesmo ensinou a perdoar sempre. Portanto, o que cabe ao clero não é se colocar na porta de entrada do céu conferindo o alvará de entrada no reino eterno, mas sim proclamar aos quatro ventos que não há mais condenação alguma, e por isso não há mais sacrifício algum a se fazer para se alcançar a misericórdia divina; nem ofertas, nem dízimos, nem vales, nem velas, nem carmas, nem darmas. Tudo está consumado e todos são livres se assim crerem.

Mas de fato pecados são retidos. Não porque há alguém que tenha o poder mágico de retê-los, mas porque há pecadores que creem que esse alguém tem tal poder. E esse mesmo alguém sabendo da farsa, se cala, a fim de exercer o poder dominador sobre os indoutos de boa fé.

Exercer o poder de perdoar pecados é, tão somente, ter influência suficiente sobre alguém, a fim de que este alguém compreenda que o perdão já foi concedido a quem, simplesmente, entende que não existe mais qualquer maldição ou condenação, senão aquela da qual já fomos todos sentenciados, a saber, somos presos ao que cremos.

Portanto, a quem crê, resta-lhe a certeza que o caminho expurga todo mal. É caminhando, errando e acertando, caindo e levantando, que vivemos um purgatório constante onde o aprendizado da vida nos resgata da escuridão e nos faz ser melhores a cada dia. Isso não tem nada a ver com dogmas, rituais ou sacrifícios. Tem a ver com consciência, verdade e liberdade. Porque a verdadeira religião nos salva do religionismo, nos religa ao universo e nos faz livres.

O versículo referido no início deste ensaio não deve, nem pode ser interpretado como uma outorga que Cristo dá aos seus discípulos para que determinem quem recebe ou não o perdão de Deus, quem entra ou fica de fora do céu. Jesus não incumbiria seus discípulo de prestarem o desserviço que já era prestado pelos fariseus e pelo qual Jesus os repreendia, denunciando-os  por sentarem-se na cadeira de Moisés, não entrarem pela porta nem deixarem que outros entrassem. O versículo deve, sim, ser entendido como uma exortação de Cristo sobre a responsabilidade daqueles que se evidenciam no ministério eclesiástico, quanto aos reflexos gerados por seus ensinamentos. Porque o bom ensinamento sempre liberta. “Vós já estais livres, pela palavra que vos tenho ensinado”, disse o Verbo de Deus.

Entendo que essa seja a única forma de sermos livres, para livre amarmos, servirmos e contemplarmos a vida numa relação de adoração sincera ao criador. Doutro modo estaremos apenas trocando amarras por amarras, laços por laços, desprendendo-nos daqui para aprisionarmo-nos ali, enganando-nos numa pseudo-conversão  onde tudo que se faz é, na melhor das hipóteses, barganha, barganha e barganha infernal. Nesse negócio não há mudança de vida, porque a verdadeira mudança de vida só se dá pelo amor, no amor e para o amor. Jamais o medo do castigo mudou alguém. No máximo moldou, limitou, aprisionou, condicionou o estereotipo sem qualquer conversão do interiotipo.

Eu não sei se a religião, como a temos hoje, suportaria uma fé assim. Mas sei que a subsistência de uma fé superficial estereotipada não é benéfica. Jamais foi. A verdade é que ela, assim como a vemos vivida hoje e estampada ao longo da história, precisa, para sua subsistência, mais do inferno do que do céu, mais do diabo do que de Deus, mais do medo do que do amor, mais da delimitação do que da liberdade, e o pior de tudo, mais da mentira do que da verdade. Essa realidade nos faz pensar no que, de fato, essa religião está nos religando. Porque foi em nome dessa fé que velhas benzedeiras que só faziam o bem foram bruxificadas e caçadas até a morte; dádivas preciosas como a música e a dança foram demonizadas; riquezas culturais foras diabolizadas; pessoas boas foram marginalizadas por conta de sua orientação sexual; gente linda foi segregada e escravizada por causa da cor de sua pele e mulheres foram discriminadas pela culpa de terem nascido mulheres. Então me pergunto: Quem precisa perdoar a quem?

Por fim, a verdadeira função sacerdotal cristã não é reter nem deter qualquer poder, mas sim guardar a fé que é vivida no amor, zelar pela consciência da liberdade que Cristo dá a toda criatura, lutar por justiça e paz na terra e não deixar que as coisas sagradas desta vida se corrompam pelo dogmatismo religioso que afasta o ser humano da simplicidade do Evangelho e da liberdade que há em seu Espírito.

Essa é a fé que me faz livre, como livre é o Espírito que a proclama.