quinta-feira, 3 de abril de 2014

A QUEM PERDOARDES...

Por Julio Zamparetti

Aos discípulos disse o Mestre: “a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-á perdoado. A quem retiverdes, ser-lhes-á retido”. Com isso diz a Igreja Católica que os padres têm o poder de conceder a absolvição ou deixar à condenação o pobre pecador. De carona, outras igrejas, mesmo sem crer no sacramento da absolvição, se aproveitam da ideologia para autenticar a autoridade de sua inquestionável liderança. Entretanto, é difícil, para qualquer ser pensante, crer que o Pai deixará a tarefa de absolver ou condenar pessoas nas mãos de uma casta de pessoas igualmente falhas, tão somente por conta de sua patente religiosa.

Se aos discípulos foi-lhes dado o poder de perdoar, isso não se deu pelo fato de portarem uma patente religiosa, nem porque Deus confiava neles para esse fim, mas porque as pessoas confiariam no que eles haveriam de falar a elas. Pois o verdadeiro poder das palavras não está nos lábios de quem as diz, mas no coração de quem, tendo escutado, acredita.

Se é verdade que Cristo disse que seus discípulos teriam o poder de perdoar ou reter pecados, também é bem verdade que ele mesmo ensinou a perdoar sempre. Portanto, o que cabe ao clero não é se colocar na porta de entrada do céu conferindo o alvará de entrada no reino eterno, mas sim proclamar aos quatro ventos que não há mais condenação alguma, e por isso não há mais sacrifício algum a se fazer para se alcançar a misericórdia divina; nem ofertas, nem dízimos, nem vales, nem velas, nem carmas, nem darmas. Tudo está consumado e todos são livres se assim crerem.

Mas de fato pecados são retidos. Não porque há alguém que tenha o poder mágico de retê-los, mas porque há pecadores que creem que esse alguém tem tal poder. E esse mesmo alguém sabendo da farsa, se cala, a fim de exercer o poder dominador sobre os indoutos de boa fé.

Exercer o poder de perdoar pecados é, tão somente, ter influência suficiente sobre alguém, a fim de que este alguém compreenda que o perdão já foi concedido a quem, simplesmente, entende que não existe mais qualquer maldição ou condenação, senão aquela da qual já fomos todos sentenciados, a saber, somos presos ao que cremos.

Portanto, a quem crê, resta-lhe a certeza que o caminho expurga todo mal. É caminhando, errando e acertando, caindo e levantando, que vivemos um purgatório constante onde o aprendizado da vida nos resgata da escuridão e nos faz ser melhores a cada dia. Isso não tem nada a ver com dogmas, rituais ou sacrifícios. Tem a ver com consciência, verdade e liberdade. Porque a verdadeira religião nos salva do religionismo, nos religa ao universo e nos faz livres.

O versículo referido no início deste ensaio não deve, nem pode ser interpretado como uma outorga que Cristo dá aos seus discípulos para que determinem quem recebe ou não o perdão de Deus, quem entra ou fica de fora do céu. Jesus não incumbiria seus discípulo de prestarem o desserviço que já era prestado pelos fariseus e pelo qual Jesus os repreendia, denunciando-os  por sentarem-se na cadeira de Moisés, não entrarem pela porta nem deixarem que outros entrassem. O versículo deve, sim, ser entendido como uma exortação de Cristo sobre a responsabilidade daqueles que se evidenciam no ministério eclesiástico, quanto aos reflexos gerados por seus ensinamentos. Porque o bom ensinamento sempre liberta. “Vós já estais livres, pela palavra que vos tenho ensinado”, disse o Verbo de Deus.

Entendo que essa seja a única forma de sermos livres, para livre amarmos, servirmos e contemplarmos a vida numa relação de adoração sincera ao criador. Doutro modo estaremos apenas trocando amarras por amarras, laços por laços, desprendendo-nos daqui para aprisionarmo-nos ali, enganando-nos numa pseudo-conversão  onde tudo que se faz é, na melhor das hipóteses, barganha, barganha e barganha infernal. Nesse negócio não há mudança de vida, porque a verdadeira mudança de vida só se dá pelo amor, no amor e para o amor. Jamais o medo do castigo mudou alguém. No máximo moldou, limitou, aprisionou, condicionou o estereotipo sem qualquer conversão do interiotipo.

Eu não sei se a religião, como a temos hoje, suportaria uma fé assim. Mas sei que a subsistência de uma fé superficial estereotipada não é benéfica. Jamais foi. A verdade é que ela, assim como a vemos vivida hoje e estampada ao longo da história, precisa, para sua subsistência, mais do inferno do que do céu, mais do diabo do que de Deus, mais do medo do que do amor, mais da delimitação do que da liberdade, e o pior de tudo, mais da mentira do que da verdade. Essa realidade nos faz pensar no que, de fato, essa religião está nos religando. Porque foi em nome dessa fé que velhas benzedeiras que só faziam o bem foram bruxificadas e caçadas até a morte; dádivas preciosas como a música e a dança foram demonizadas; riquezas culturais foras diabolizadas; pessoas boas foram marginalizadas por conta de sua orientação sexual; gente linda foi segregada e escravizada por causa da cor de sua pele e mulheres foram discriminadas pela culpa de terem nascido mulheres. Então me pergunto: Quem precisa perdoar a quem?

Por fim, a verdadeira função sacerdotal cristã não é reter nem deter qualquer poder, mas sim guardar a fé que é vivida no amor, zelar pela consciência da liberdade que Cristo dá a toda criatura, lutar por justiça e paz na terra e não deixar que as coisas sagradas desta vida se corrompam pelo dogmatismo religioso que afasta o ser humano da simplicidade do Evangelho e da liberdade que há em seu Espírito.

Essa é a fé que me faz livre, como livre é o Espírito que a proclama.

Um comentário:

  1. Gosta das suas reflexões, amado irmão e amigo!

    "Deus, teu amor é qual paisagem bela,
    qual campo aberto, lar e proteção.
    Livres vivemos, livres habitamos,
    livres para aceitar ou rejeitar.

    Libertos para o encontro de nós mesmos,
    libertos para em comunhão viver;
    necessitamos desta liberdade
    para sonhar, para amadurecer.

    Só tu, Senhor, nos dás a liberdade,
    só tu, juiz, nos podes absolver.
    Lá onde o teu amor alcança os homens
    dás liberdade a raças e nações."

    Anders Frostensson (HPD 176)

    Abraços fraternos.

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